quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Este Natal

Carlos Drummond de Andrade

— Este Natal anda muito perigoso — concluiu João Brandão, ao ver dois PM travarem pelos braços o robusto Papai Noel, que tentava fugir, e o conduzirem a trancos e barrancos para o Distrito. Se até Papai Noel é considerado fora-da-lei, que não acontecerá com a gente?
Logo lhe explicaram que aquele era um falso velhinho, conspurcador das vestes amáveis. Em vez de dar presentes, tomava­os das lojas onde a multidão se comprime, e os vendedores, afobados com a clientela, não podem prestar atenção a tais manobras. Fora apanhado em flagrante, ao furtar um rádio transistor, e teria de despir a fantasia.
— De qualquer maneira, este Natal é fogo — voltou a ponderar Brandão, pois se os ladrões se disfarçam em Papai Noel, que garantia tem a gente diante de um bispo, de um almirante, de um astronauta? Pode ser de verdade, pode ser de mentira; acabou-se a confiança no próximo.
De resto, é isso mesmo que o jornal recomenda: "Nesta época do Natal, o melhor é desconfiar sempre”.Talvez do próprio Menino Jesus, que, na sua inocência cerâmica, se for de tamanho natural, poderá esconder não sei que mecanismo pérfido, pronto a subtrair tua carteira ou teu anel, na hora em que te curvares sobre o presépio para beijar o divino infante.
O gerente de uma loja de brinquedos queixou-se a João que o movimento está fraco, menos por falta de dinheiro que por medo de punguistas e vigaristas. Alertados pela imprensa, os cautelosos preferem não se arriscar a duas eventualidades: serem furtados ou serem suspeitados como afanadores, pois o vende­dor precisa desconfiar do comprador: se ele, por exemplo, já traz um pacote, toda cautela é pouca. Vai ver, o pacote tem fundo falso, e destina-se a recolher objetos ao alcance da mão rápida.
O punguista é a delicadeza em pessoa, adverte-nos a polícia. Assim, temos de desconfiar de todo desconhecido que se mostre cortês; se ele levar a requintes sua gentileza, o melhor é chamar o Cosme e depois verificar, na delegacia, se se trata de embaixador aposentado, da era de Ataulfo de Paiva e D. Laurinda Santos Lobo, ou de reles lalau.
Triste é desconfiar da saborosa moça que deseja experimentar um vestido, experimenta, e sai com ele sem pagar, deixando o antigo, ou nem esse. Acontece — informa um detetive, que nos inocula a suspeita prévia em desfavor de todas as moças agradáveis do Rio de Janeiro. O Natal de pé atrás, que nos ensina o desamor.
E mais. Não aceite o oferecimento do sujeito sentado no ônibus, que pretende guardar sobre os joelhos o seu embrulho.
Quem use botas, seja ou não Papai Noel, olho nele: é esconderijo de objetos surrupiados. Sua carteira, meu caro senhor, deve ser presa a um alfinete de fralda, no bolso mais íntimo do paletó; e se, ainda assim, sentir-se ameaçado pelo vizinho de olhar suspeito, cerre o bolso com fita durex e passe uma tela de arame fino e eletrificado em redor do peito. Enterrar o dinheiro no fundo do quintal não adianta, primeiro porque não há quintal, e, se houvesse, dos terraços dos edifícios em redor, munidos de binóculos, ladrões implacáveis sorririam da pobre astúcia.
Eis os conselhos que nos dão pelo Natal, para que o atravessemos a salvo. Francamente, o melhor seria suprimir o Natal e, com ele, os especialistas em furto natalino. Ou — idéia de João Brandão, o sempre inventivo — comemorá-lo em épocas incertas, sem aviso prévio, no maior silêncio, em grupos pequenos de parentes, amigos e amores, unidos na paz e na confiança de Deus.
(14-12-1966)
Caminhos de João Brandão", José Olympio Edi
Depois do jantar
Carlos Drummond de Andrade



Também, que idéia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo


 de Freitas, depois do jantar.


O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à


 sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.


— Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?


— Não fumo, respondeu o outro.


Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo,


 consultou o relógio:


— 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.


— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.


— Como?


— Já disse. Vai passando o relógio.


— Mas ...


— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.


— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa


 fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.


O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal


, o relógio mudou de dono.


— Agora posso continuar?


— Continuar o quê?


— O passeio. Eu estava passeando, não viu?


— Vi, sim. Espera um pouco.


— Esperar o quê?


— Passa a carteira.


— Mas...


— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho,


 nessa idade?


— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um


 relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de


 pagar...


— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?


— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.


— Diga.


— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.


— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o


 assaltado o produto do assalto?


— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?


— É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o


 metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?


— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o


 dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.


— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.


— Não precisa, não precisa.


— Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está


 querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.


— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a


 mim mesmo.


— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?


— Claro.


— Você, o assaltado. Certo?


— Confere.


— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são


só dois mil.


— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos.


 Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de


 cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com


um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha


 trocado, é porque não tinha trocado mesmo.


— Tá bom, não se discute.


— Vamos, procure nos... nos escaninhos.


— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados


 dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu


 mexo nela à vontade.


— Deixe ao menos tirar os documentos?


— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas


 rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.


—  Nem uma de quinhentos? Uma só.


—  Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus.


 Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.


—  Nem eu ia aceitar dinheiro de você.


— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente


neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma


 lembrancinha.


Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.

Texto extraído do livro "Os dias lindos", Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1977, pág. 54.



Texto extraído do livro "

Nenhum comentário:

Postar um comentário

a href="http://oficina-do-gif.blogspot.com/" target="_blank">